Outro sopro de memória.
por id435009.scuczx.xyz
“Amor”, a voz falhou, tossiu, “a água.”
A mulher, surpresa com o uso quase indevido da palavra, demorou para atendê-lo – ou, pior, para entendê-lo.
Ele não esperou e trepou o assento ao lado, alçando a garrafa do chão. Tomou dois goles, pigarreou, tomou mais um, e seguiu dirigindo em silêncio. Eles seguiram em silêncio.
Amor… Apelido carinhoso. É isso, não? Ou pelo menos era assim que ela um dia chegou a entender… Pela última ou pela primeira vez, tanto faz, lembrava-se como, e não quando, foram esses tempos. Bons tempos. Tempos em que o Amor era também um apelido. Lembrou-se da vez em que, depois de um jantar a dois – uma moqueca de peixe, receita herdada da mãe, mais leve, que levava noz-moscada e menos óleo de dendê -, embalados pelo vinho barato e pela música do rádio da sala, caíram em uma dança sem jeito e, portanto, divertida. Lembrou-se de quando ele, sem graça, voltando da maternidade, perguntou que dieta ela havia feito (talvez tenha sido aí a última vez que ele a reconheceu como “amor”). Lembrou-se da igreja, Paris, aniversário, até de dias tristes, deliciosos dias tristes… Lembrou-se de… Nenhuma outra imagem lhe ocorreu à memória, talvez porque a idade avançava, ou talvez porque sabia que não ia levar a nada.
Lindo…triste, mas lindo.
O meu amigo retorna e não me avisa. Como estou brava com ele!
Como você está, sumido?
Lindo. Sabe o que me lembrou? :
Amor, então
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
P. Leminski