Adeus, Tante

por id435009.scuczx.xyz

Resolvi passar um tempo nas montanhas. Uma casa em ruínas que disputava idade com a sua dona, minha tia-avó, Laura. Quem é Laura? A chamávamos de Tante, sempre Tante… Ela atendeu imediatamente. Sua voz me fez lembrar os sulcos cavando o rosto; os olhos minúsculos, aquosos e sem força; e seu cabelo (peruca?) tingido de um vermelho azulado: sim, a dívida com o tempo, há anos ele passava cobrá-la. Claro, filho, respondeu com a voz fraca mas melodiosa de sempre, só passe aqui pra pegar as chaves e dar um beijo na tia. Coitadinha, a vida pouco lhe deu e já estava se esvaindo, se despedindo.

Ao chegar – aquela casa avariada pelos ponteiros, rodeada de amoreiras podres – senti o cheiro da infância. Havia quase dois anos que não a visitava. Ouvi a chave virar e logo sua forma enorme atravessou a porta. Que espírito, que espírito! Mesmo depois da doença, ainda se recusava a andar de muletas. Nunca reclamou do joelho, que, como era claro em sua expressão ao se levantar da antiga poltrona, matava a velha. Meu irmão e eu fomos os únicos a lhe dar um beijo quando a enterraram no hospital, sem esperança. Mostra pra eles, Tante, pensávamos enquanto a víamos, gorda e solteirona, na sua camisola azul hospitalar. Sem forças, ela apenas levemente movia os lábios gordos. Câncer no estômago e sorrindo, que mulher. Lau… Tante, a mulher sem maridos, sem filhos, sonhos, ambições ou qualquer outra coisa do tipo, fazia da sua alegria preparar tortas de framboesa – o creme era segredo de estado, não contava nem à mamãe – para Paulo, meu irmão, e eu. Mas apesar do gosto inesquecível daquela iguaria francesa, o paladar não era o motivo central de nossas visitas. Aquela senhora volumosa passava horas e horas à frente do National Geographic afim de, depois, meses ou anos depois, nos contar histórias de macacos ciumentos e camaleões “malandros”, imitando sons e gestos com as mãos gordas. Ria com as nossas risadas. Adorávamos imitá-la com as mãos, insuflando as bochechas. A gente se divertia, né, filho? Sorriu enquanto me passava a chave com seus dedos de panetone. Não quer entrar?, vou fazer panquecas que você gosta. Vi a solidão em seu rosto fraco e abatido, e, pela primeira vez, a vi triste. Talvez até aquele espírito já se rendera à barbárie que é a solidão. Não queria vê-la assim, demorei para responder. Ela me puxou pela mão. Não, Tante, obrigado, outro dia… Vê-la naquele estado havia me deixado em choque. Prossegui, como que me desculpando: mas fique tranquila com a casa, Tia; irei trocar os velhos pisos e quem sabe passar uma nova demão de tinta, pretendo ficar um bom tempo. Ela sorriu. Peguei a chave. Ela tossiu. Percebi que talvez não a veria de novo. Ao me despedir, tentando abraçar sua circunferência gorda, minha voz falhou, com a tristeza tomando minha garganta: tchau, tchau, Tante; se cuida, Tante. Vê-la dando o tchauzinho roliço da janela, enquanto eu ligava o carro, me fez a pessoa mais triste do mundo. Não tive forças para fazer diferente. Adeus, Tante.